segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Cântico Negro - José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Não, não vou por ai! Só vou por onde Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, fdi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

olhos de céu

Tocou meu braço.
Olhei-a.
Rosto tão sereno e tão perdido.
Olhos de céu.
Que outro lugar poderias estar, se não no "mundo da lua", como julgam?
Lugar melhor que nossa pobre terra pobre.
Ofereceu-me um pouco de feijão.
Não, obrigada.
Perguntou-me algo que não entendi.
Respondi que sim.
Ela sorriu.
Sorriu com os olhos.
Com os olhos de céu.
Saiu sem se despedir.
Ficou sem se apresentar.
Adeus, velha menina.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

pontuação

Não houve um ponto final.
Ainda que dúvidas existam, nunca fostes um ponto de interrogação. Não há indagações claras.
Por um momento, acreditei que vivia um ponto de exclamação.
Só uma vírgula? Talvez. Talvez não.
Nos meus sonhos, seriam dois pontos.
Mas o que há realmente são as reticências... Sempre ali... Deixando escondido, calado, subentendido...
ponto ponto ponto

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

fim

O toque gelado da arma na testa foi como um despertador para o que estava acontecendo. Cerca de meio segundo para a bala sair da arma. Quanto tempo para atravessar minha cabeça? Tempo suficiente para assistir o famoso filme da minha vida.
Oh, Deus! Eu vou morrer! Mais ainda - vou deixar de viver! E todas as coisas que deixei de fazer? O lixo deveria ter sido colocado lá fora.... E tudo que eu deveria ter dito a você. Coisas que você nunca vai saber.
Será que você chega aqui antes que meu corpo esteja sem alma? Dizem que a audição é o último sentido que morre...Queria ter tua voz como último rastro de vida em mim
Meu assassino fala comigo. Não quero ouvir. Sei que nada vai adiantar. Chegou a hora. Não ouço nada. Acho que era mentira,  a audição é o primeiro sentido a morrer.
O gelo deixou minha testa. 
Salvação.
Soco quente no nariz. 
Ilusão. 
Visão da arma olhando para mim. 
Concluo. 
O trajeto da bala até mim. 
Chão.

menino

Uma sacola amarrada por uma linha.
A sacola colocada para fora do ônibus.
A outra ponta da linha segurada por pequenas mãos.
Tão simples brincadeira.
Nos olhos do menino o sentimento que há tempos não reconhecia: felicidade genuína.